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Entrevista Página de Educação

Cinema de animação português atravessa fase de crescimento sustentado, mas "faltam profissionais qualificados" e as escolas "não têm oferta de formação", diz Abi Feijó em entrevista à Página

Abi Feijó é um dos mais conhecidos produtores de cinema de animação portugueses. Formado em Arte Gráfica e Design pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, iniciou-se nesta arte, em 1978, através dos 'ateliers' de cinema de animação do CINANIMA, tendo, desde então, percorrido alguns dos mais conceituados estúdios do mundo - nomeadamente o Office National du Film du Canada. Fundou, em 1987, aquele que é considerado um dos mais antigos estúdios portugueses ainda em funcionamento - o Filmógrafo -, sendo, desde 1998, professor da Universidade Católica do Porto. Apesar de reconhecer que o cinema de animação independente atravessa um momento de crescimento, Abi Feijó critica o Estado por não ter sabido aproveitar a oportunidade de catapultar o cinema de animação nacional além-fronteiras.


Como caracterizaria o actual panorama do cinema de animação em Portugal?
Para fazer essa caracterização valeria a pena recuar até ao início dos anos noventa, altura em que praticamente não havia apoios para a produção de cinema de animação em Portugal. A política do Instituto Português do Cinema (IPC) - à frente do qual esteve, durante quinze anos, o doutor Salgado Matos - era conduzida no sentido de não disponibilizar verbas para as curtas metragens de animação, acabando por comprometer o desenvolvimento de toda uma geração de jovens produtores, que aos poucos foi esmorecendo. Isto, apesar de nessa altura existirem autores que mantinham um trabalho interessante, nomeadamente a Top Filmes, apesar de esta produtora ter estado mais vocacionada para o cinema de animação clássico e para o mercado televisivo. Depois desse "reinado", a animação portuguesa quase desapareceu, a Top Filmes faliu e os estúdios que sobreviveram fizeram-no à custa do mercado da publicidade.

Que argumentos apresentava o Estado para restringir o financiamento ao cinema de animação?
O argumento baseava-se nas limitações orçamentais do IPC e no facto de as curtas metragens serem um produto que, de um modo ou outro, com ou sem financiamento, acabaria sempre por aparecer... O financiamento, quando existia, era destinado à produção de longas metragens, mas mesmo este estava limitado a uma ou duas por ano.

Essa fase de "recessão", se assim se lhe pode chamar, durou até quando?
Até 1991, altura em que a política para o sector mudou e se começou a apoiar também as curtas metragens. Os primeiros concursos para curtas metragens surgiram no final desse ano. E esse apoiou modificou, de facto, o panorama da animação em Portugal. A partir daí, as verbas destinadas ao cinema de animação foram aumentando de uma forma sustentada e regular. Assim, se em 1991 havia um orçamento de 50 mil contos para a produção de curtas metragens de ficção, documentários e animação, no tempo do ex-ministro Manuel Maria carrilho o orçamento do Ministério da Cultura destinou cerca de 90 mil contos para a produção de curtas metragens, 60 mil para séries e 130 mil para uma longa metragem. Depois da saída de Carrilho o apoio estabilizou, tendo havido um ligeiro decréscimo recentemente. Como reflexo, a produção nacional desenvolveu-se, a partir de então, com características próprias e muito diferentes da anterior.

Como caracterizaria o sector actualmente?
A situação é de alguma estabilidade em relação aos valores que já referi, a que se junta a possibilidade (para além destes apoios do Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia - entidade que veio substituir o IPC), de estabelecer contratos de co-produção com a Rádio Televisão Portuguesa.

Esses contratos limitam-se à emissora pública?
Penso que existem acordos com a TVI e com a SIC, mas não conheço nenhuma produtora que tenha assinado qualquer contrato com estas estações.

Ou seja, ao contrário do que acontece com os filmes portugueses, não há nenhuma quota mínima para o cinema de animação nos canais de televisão nacionais?
Nem para o cinema de animação, nem para o cinema de ficção. Não há quotas no mercado para a produção nacional. Há uma proposta nesse sentido, mas há quem esteja de acordo e há quem esteja contra.

Qual é a sua opinião?
O actual panorama não é muito animador para os cineastas já que as hipóteses de exibição de produções nacionais são escassas. Mas se, por um lado, a existência de quotas obrigaria o mercado dos exibidores públicos a incluir na programação os filmes nacionais - o que traria evidentes vantagens para os produtores -, por outro correr-se-ia o risco de "meter no mesmo saco" o bom e o mau e de privilegiar a quantidade em detrimento da qualidade. Como alternativa, encaro a existência de um mecanismo de incentivo à produção que permita viabilizar a sobrevivência das produtoras.
É preciso um equilíbrio. Não podemos ser ingénuos ao ponto de deixar o mercado auto-regular-se. Se o deixarmos funcionar sem qualquer regulação verifica-se o que acontece hoje: uma invasão da cinematografia americana e a aniquilação dos restantes produtores. Aliás, os próprios americanos são proteccionistas em relação ao seu próprio mercado e às suas próprias produções, apesar da força que lhes conhecemos.

Faltam profissionais qualificados

Sem pretender estabelecer uma comparação simplista, qual é a nossa situação em relação aos restantes países da união europeia?
Portugal é um país de pequena cinematografia. A quantidade de produções é muito limitada. Basta compararmos com os nossos vizinhos espanhóis. Aqui ao lado, a produção de curtas e de longas metragens é, no mínimo, dez vezes superior em relação à produção nacional. Isto, não desprezando o facto de, em termos qualitativos, a animação portuguesa ter produzido filmes bastante mais interessantes - talvez um tanto devido ao facto de eles estarem mais vocacionados para as séries e para as longas metragens.

Os produtores portugueses estão limitados ao financiamento do governo ou existem verbas da União Europeia para o sector?
Na década de noventa houve linhas de financiamento europeu a que alguns produtores tentaram concorrer, mas às quais foi difícil aceder. Em primeiro lugar pelo facto de o Estado se ter alheado de programas como o Forum Cartoon ou o Media, que se destinavam a promover a indústria da animação. Depois, porque em Portugal não se cria uma indústria de um dia para outro, após quinze anos de marasmo. Há falta de profissionais qualificados e as escolas não têm oferta de formação especializada. Os profissionais que neste momento trabalham no cinema de animação foram sendo formados no âmbito das próprias produções, sobretudo de curtas metragens.

Que oferta de formação existe em Portugal?
Não existe nada que se possa considerar uma verdadeira formação profissional. Há alguma formação pontual. O curso mais estruturado será porventura o da Escola Profissional da Imagem, em Lisboa, equivalente ao ensino secundário. Ainda ao nível do ensino secundário, as escolas de ensino artístico especializado Soares dos Reis, no Porto, e António Arroio, em Lisboa, têm também alguma formação nesta área.
Mas se comparamos com a situação do Royal College de Londres, por exemplo, cuja prova de admissão requere, no mínimo, uma licenciatura, podemos facilmente depreender que o âmbito da especialização aqui e lá fora é muito diferente.

Não há oferta de formação no ensino superior?
Na Universidade Católica existe uma disciplina de animação que, no total dos cinco anos de formação, equivale, na melhor das hipóteses, a três ou quatro semestres. É um primeiro passo, mas ainda assim é um curso extremamente generalista nas áreas da imagem e do som, não se podendo considerá-lo um curso de especialização em cinema de animação. O mesmo se passa com o curso de Design da Escola Superior de Educação de Faro, que inclui animação, mas que também não pode ser considerado como uma especialização.

As faculdades de Belas Artes não teriam um papel a assumir neste contexto?
As faculdades de Belas Artes do Porto e de Lisboa continuam, estoicamente, a ignorar o cinema de animação. Nunca percebi porquê. A Faculdade de Belas Artes do Porto, que é talvez o exemplo que conheço melhor, oferece cursos de pintura, de escultura e de design gráfico, com especialização nas tecnologias de desenho, de pintura, de serigrafia, de gravura, de fotografia e de cinevideo, ignorando por completo a animação. Isto não faz sentido, quanto mais não seja porque a animação faz precisamente a ponte entre as artes plásticas, as artes gráficas e a imagem em movimento.
Daí as saídas profissionais não serem muitas...
Apesar de não haver um mercado muito alargado, a verdade é que as produtoras se vêm com grandes dificuldades em conseguir profissionais qualificado para trabalhar. Por vezes temos necessidade de um determinado profissional e acabamos por estar a formá-lo no contexto de trabalho. É como uma pescadinha de rabo na boca...
Em Lisboa, chegaram a abrir dois estúdios dirigidos para produção de cinema de animação industrial - a MagicTunes e a Neurónio, cada um com cerca de 40 animadores a trabalhar -, e os primeiros seis meses foram, na prática, dispendidos em formação. Há menos de um ano ambos fecharam as portas.

Produção independente tem "condições privilegiadas"

Partindo deste quadro que traçou, qual é a perspectiva de evolução para o cinema de animação nacional?
Julgo que os produtores poderão manter o trabalho que está ser desenvolvido, para o qual penso que poderão continuar a contar com o apoio do ICAM e da RTP, e, eventualmente, com outros apoios ou co-produções pontuais, tanto ao nível das curtas metragens como das séries.
No caso das séries, e tal como atrás referi, existe um programa europeu chamado Forum Cartoon, que pode ser considerado como um ponto de encontro entre produtores e financiadores, sendo um mecanismo extremamente importante para a montagem financeira das mesmas. Porém, os portugueses nunca obtiveram grandes resultados através dele porque não existiram apoios nacionais por trás. E sem esse apoio é impossível montar qualquer projecto que possa concorrer no seu âmbito. Quando começou a haver um apoio mais regular ao cinema de animação nacional já o financiamento estava a ser tomado pelas grandes empresas europeias, razão pela que se torna agora mais difícil entrar no "clube" dos grandes.

A hipótese da existência de um estúdio estatal está, à partida, posta de parte...
O único país que continua a manter um estúdio de Estado é o Canadá, através do National Film Board of Canada. Os estúdios nacionais que eram mantidos pelos países do leste da Europa desapareceram com a liberalização do mercado, recomeçando, aqui e ali, a surgir alguns trabalhos interessantes.

A produção independente em Portugal tem futuro?
Nesse aspecto, acho que nunca estivemos tão bem como agora. Há um importante apoio estatal para a produção de cinema de animação independente, sendo mais fácil montar financeiramente uma curta metragem do que uma série, muito em parte pelas razões que atrás referi. Mas é possível, e interessante, produzir curtas metragens de autor, porque existem, de certa forma, condições privilegiadas para o fazer.

Foi fundador do Animatógrafo e da Casa da Animação. Pode explicar-me o âmbito de intervenção de cada um?
A Filmógrafo é uma sociedade de produção que nasceu em 1987, sendo, na prática, um estúdio de cinema de animação. A Casa da Animação é uma associação cultural criada há dois anos, que pretende dinamizar um centro cultural - actualmente em fase de conclusão -, onde se promovam acções de promoção e de divulgação do cinema de animação, tendo, de certo modo, uma actividade complementar ao Filmógrafo. Contará com uma sala de exibição, uma biblioteca, uma videoteca de arquivo, um estúdio de produção e de formação, e um espaço de exposições.

A Casa da Animação terá um âmbito exclusivamente local, ou pretende que ele alargue a sua influência a nível regional e nacional?
A Casa da Animação pretende ter uma acção essencialmente local, porque tem sede no Porto, mas procurará alargar-se ao espaço nacional através de programas de itinerância. Para além disso, e embora esta vertente não esteja ainda operacional, gostaríamos a médio prazo de trabalhar no sentido de internacionalizá-la, mostrando o que de melhor se faz lá fora e, através de projectos de colaboração com entidades congéneres, divulgar o cinema de animação nacional no estrangeiro.

Para quando está prevista a abertura?
No princípio de Maio, se tudo correr bem.

Em que medida pode o cinema de animação ser utilizado como um instrumento pedagógico?
De muitas formas. Temos desenvolvido uma série de 'ateliers' infantis ao longo dos anos, nos quais o cinema de animação já mostrou como pode ser um excelente meio de vincular aprendizagens e de permitir a interdisciplinaridade. Um dos 'workshops' mais interessantes que realizamos decorreu na Escola Básica 2,3 das Caldas das Taipas, onde fizemos uma animação sobre o 25 de abril, que era o tema que eles estavam a desenvolver na Área Escola. Foi um trabalho que permitiu cruzar aspectos históricos, musicais e visuais, e que funcionou bastante bem.

De que forma pode o cinema de animação chegar mais às escolas? Há algum acordo com o Ministério da Educação nesse sentido?
Temos tido um programa especial regular dedicado às escolas através do qual nos disponibilizamos gratuitamente para a apresentação de sessões de animação. Quanto à realização de workshops a actividade tem sido menos regular, não porque não tenhamos condições de o fazer, mas porque existe uma outra entidade, o Centro Lúdico da Imagem Animada, que tem feito um trabalho muito interessante nesta área, e ao qual não nos pretendemos sobrepor. Podemos entender o trabalho de cada um como complementar.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

Abi Feijó; Jornal a Página da Educação" , ano 11, nº 111, Abril 2002, p. 36.


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