Entrevista ao professor Abi Feijó
produzida por Pedro Cruz e Daniel Ribas realizada em 12 de Abril por Daniel Ribas e Bernardo Camisão
A nossa entrevista tinha como objectivo assinalar a estreia comercial de Fado Lusitano, uma curta de animação,
produzida pelo Filmógrafo em 1995 e só estreada 5 anos depois, em complemento
ao filme Tarde Demais.
Fomos encontrar o professor Abi Feijó, após uma conferência sobre cinema de
animação, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, por ocasião
do FestiVideo, um festival ainda novo, dedicado às novas formas do
audiovisual. Apanhámo-lo por isso após cerca de hora e meia de conversa. Nada
mais ideal para o que queríamos perguntar.
A conversa andou sempre à volta do cinema de animação, onde, manifestamente,
o professor Abi Feijó se sente mais à vontade. Falámos de política, de
economia, da nova geração, do Cinanima, e, claro, da sua carreira
DO FADO
LUSITANO - A NOSSA SAGA
C de Crítica – Esta entrevista vem, claro, a propósito da estreia
comercial de Fado Lusitano nas
salas de cinema, o que é um facto por si só revolucionário...
professor Abi Feijó – ... não é
assim tanto revolucionário como isso!
C de C – O Fado Lusitano é um filme sobre viagens, além de ser sobre o povo
Português. Curiosamente o professor também teve que sair de Portugal para se
formar em animação, para ter formação específica em animação (se estivermos
enganados, diga-nos). Nesse sentido o Fado
Lusitano também é sobre si?
AF – Hmm… Quer dizer, à partida, o
Fado Lusitano é um auto-retrato. A
proposta do Fado Lusitano é ser um
auto-retrato de Portugal. O filme começou com uma encomenda do John Halas que
era um animador de origem húngara, que foi para Inglaterra nos anos 40, e fez
um dos principais estúdios ingleses de animação. Produziu, entre outras
coisas, talvez a mais conhecida seja a longa metragem Triunfo dos Porcos, já nos anos 50, muito ao estilo Disney, muito
bem feito. O John Halas fez para aí 200 filmes, e o último projecto que ele
tinha em mãos era fazer uma série em cada país europeu fazia o seu
auto-retrato. E pediu-me para fazer o episódio português. Logo aí,
obviamente, o Fado Lusitano é o que é ser-se português – como é que nós nos
sentimos. Obviamente que eu me incluo aí, de certa forma… É a minha visão
de como é que as coisas podem funcionar.
C de C – O filme ao retractar 500 anos da nossa história – começando pelos
descobrimentos e acabando na comunidade europeia…
AF – Um bocadinho mais, porque também fala da formação da nacionalidade com
os Romanos e os vários povos, os Godos, os Árabes. A nação formou-se de uma
série de mistura de povos, não é. O filme fala um bocado nessa génese, embora
muito levemente – a nossa história em 5 minutos, alguma coisa tinha que se
passar à frente, não se pode aprofundar muito. A minha ideia foi um bocado
ver o que é que é relevante nesta história toda e como é que se pode, nessas
coisas que são relevantes, ter um fio condutor que possa estruturar tudo
isso.
C de C – Mas é, de certa forma, uma saga. E aquela questão de ter passado 5
anos até à apresentação do filme…
AF – … é outra saga!
C de C – … ou uma tragédia!
AF – Uma tragédia ou uma comédia! O que se passou foi o seguinte: nós quando
fizemos Os Salteadores passámos o
filme em sala, numa altura em saiu o primeiro filme distribuído pelo Paulo
Branco: o filme Fio do Horizonte,
do Fernando Lopes. Acontece que o Fio
do Horizonte teve 2100 espectadores! E então nós achámos que seria
interessante sair novamente. E saiu com o filme Terminal Velocity, com o Charlie Sheen. Obviamente que não era um
público ideal para passar aquele filme e as coisas não resultaram muito bem.
Nem na primeira, nem na segunda, por razões diversas. Mas saiu em sala, e ao sair em sala a produtora não recebeu
um tostão pelo filme ter saído em sala. Não houve um tostão para a
produtora. Para nós zero! A única coisa que nós recebemos foram as cópias que
o ICAM pagou à distribuidora para passar aquele filme e que depois nós
recuperamos. Foi o único lucro que tivemos. Mas, inclusivamente, a Lusomundo ainda teve o descaramento de
mandar a conta da publicidade. Ora bem, essa situação faz-se uma vez, não
é – fizemos um filme, vamos passá-lo em sala: passámos o filme em sala. Continuar
com esse sistema de passar os filmes em sala sem receber, achámos que era
injusto, e que não se justifica. E tem que haver uma vontade de dar a volta.
E só agora é que foi possível desbloquear esta questão – e foi, curiosamente,
quando me encontrei com o Paulo Branco em Valência, em Espanha. É preciso ir
lá fora para resolver os nossos problemas. Mais uma saga, mais uma viagem!
C de C – De certa forma até tem a ver com o filme!
AF – Até tem a ver com o filme, é a nossa emigração. Partimos para um lado,
partimos para outro, para podermos voltar.
O MERCADO DA CURTA METRAGEM
C de C – Mas, vá lá, que o filme foi comercializado, comercializado não, foi
distribuído em cassetes pelo Diário de
Notícias.<O:P</O:P
AF – Exacto. Como não havia solução para sair em sala... Nós tivemos
propostas: por exemplo, lembro-me perfeitamente que o Tino Navarro queria
distribuir o A História do Gato e da Lua com o Adeus Pai. Ele queria, queria, queria. Mas queria a custo zero.
Zero! E eu disse-lhe: 'olha, muito obrigado, mas acho que já demos para essa
história'. Só recentemente é que o Paulo Branco tem distribuído outras curtas
de ficção em sala. Fez-se uma grande pressão nessa história sobre as curtas
metragens. E, agora, o Paulo Branco está disposto a nos dar 3% das receitas.
É simbólico, mas é o que nós vamos receber. Eu também sei que as pessoas não
vão ao cinema para ver um filme de 5 minutos, vão ver uma longa metragem.
Portanto eu também nunca ia pedir 50% da receita, que não faz sentido. Mas
pedimos uma coisa, nem que seja simbólica. Nem que seja 1 escudo por bilhete,
mas alguma coisa tem que existir para a produção. E só agora é que foi
possível resolver. Daí ter passado 5 anos entre o ter sido produzido e o ter
saído, porque não houve condições. Assim como também passaram 5 anos desde
que eu tive a fazer o story-board d'Os
Salteadores e o início da sua produção. Porque não havia condições de
produção na altura. Agora, as condições começam-se a modificar. Começa a
haver um interesse pelas curtas metragens, também motivado, de certa forma,
por Vila do Conde. Vês também que a produção de curtas metragens em Portugal
tem vindo a melhorar substancialmente o nível médio da sua qualidade. E
começa a haver um interesse do público pelas curtas metragens, não só em Vila
do Conde. No outro dia houve um ciclo de curtas metragens em Lisboa, no Fórum
Lisboa. É uma sala de 800 lugares e havia pessoas sentadas nos
corredores. Portanto, a curta metragem tem público. E agora às
quartas-feiras no King também há
sessões de curtas metragens. Tem um público, ainda é um público reduzido, mas
é um público, e isso é interessante. É interessante ver a importância e o
surgimento desse público.
C de C – É uma questão que também se passa lá fora?
AF – É uma coisa que também se passa lá fora, certamente. Existe a mesma
dificuldade lá fora de colocar as curtas metragens. E também existe um
interesse crescente da parte das curtas. Nomeadamente, por exemplo, nos
Estados Unidos. Lá fazem pacotes de curtas e põem em sala. Os americanos são
muito bons nessa merda – arranjam um grande tema, bombástico, e põem tudo.
Havia um programa que eles punham Ultrageous
Animation, animação ultrajante!, 'que esta merda, vamos ver'. Ou, The Best of the World, 'o melhor do mundo', à americana. Mas conseguem ter um
programa 10 meses a circular em sala. O Wallace
& Gromit, em Inglaterra, foi um êxito. Aqui, sabem quantos
espectadores teve o Wallace &
Gromit? Os números da Atalanta – 5000 espectadores. O The Wrong Trousers foi líder de
audiências no natal quando saiu na televisão em Londres. Na época de natal
foi o pico.
A CONJUNTURA ECONÓMICA E POLÍTICA
C de C – Mas esse crescimento das curtas metragens – também já falou à pouco
na conferência – e o facto de o ICAM suportar muito mais dinheiro para a
animação, para a longa metragem de animação, para tudo, isso o que é: uma
conjuntura económica, uma mudança de governo?
AF – Há uma conjuntura económica e há,
sobretudo, uma conjuntura política, uma vontade política de apoiar a cultura nos
moldes em que não tinha sido apoiada antes. O que se passa na animação,
não é só na animação! Passa-se na curta metragem, passa-se no documentário,
passa-se no cinema em geral, passa-se no teatro, nas artes. O Ministério da
Cultura tem feito um apoio generalizado, e tem reforçado substancialmente os
apoios na área da cultura. Para o Ministro da Cultura poder fazer isso, é
porque há uma vontade política do governo em geral, e há uma conjuntura
internacional também favorável para isso. E o que acontece é que nós
começamos a estar numa sociedade de consumo e excedentária de produção. O problema da Europa é que produz demais.
Então, como produz demais, os produtos culturais começam a ser
supervalorizados. Daí todos os programas do audiovisual e da cultura terem,
tendencialmente, grandes potenciais de crescimento em termos exponenciais.
Porque é a cultura do ócio, do lazer. A indústria do lazer, o turismo e a
cultura são as grandes apostas a curto, médio e longo prazo. Porque em termos
de produção industrial quanto menos melhor. Somos excendentários!...,
agricultura – excedentários. O nosso problema é onde colocar os produtos,
porque – é ridículo – na Etiópia e em Moçambique estão as pessoas a morrer de
fome...
C de C – ... e cá!
AF – ... mesmo cá! É a sociedade de consumo e da superprodução. Portanto, aí,
os aspectos culturais vão ser cada vez mais importantes porque as pessoas vão
ter cada vez mais tempo disponível para a cultura. Também existem novas
formas: por exemplo, os multiplex, as cidades multiplex. A mim disseram-me,
quando abriu o AMC em Gaia – abriu, assim, nos últimos três meses do ano –
esses três meses o AMC teve mais espectadores que o resto do país, todo
junto. E isso fez inverter a tendência que existia há vários anos, de a
população de cinema ter vindo a descer, até ao surgimento dos multiplex, que
começou a inverter a situação. E agora está a crescer de novo. A participação
das pessoas no cinema tem a ver com isso. No meu entender também tem a ver
muito com a má qualidade da televisão. Quanto
pior for a televisão melhor é para a cultura. É a minha teoria. Porque as
pessoas se tem bons programas na televisão: 'eh, pá tenho um bom programa,
deixa ver, isto é interessante'. Agora, quando só têm merdas na televisão:
'porra vamos fazer outra coisa, vamos ao teatro, vamos ao cinema, vamos à
rua, qualquer coisa, porfiar, mas fechem-me esta caixa que só faz merda'. A
minha política é a seguinte: quanto pior for a televisão
melhor!<O:P</O:P
O RECONHECIMENTO E O MERCADO CULTURAL
C de C – Um conceituado professor de história do cinema da Universidade
Paulista disse uma vez que a melhor animação europeia é a do professor Abi
Feijó. Como se pode compreender que um animador possa ser tão conceituado no
estrangeiro e tão desconhecido cá dentro?
AF – Sempre se ouviu dizer que santos da casa não fazem milagres. Mas até nem
é verdade – eu até tenho sido apoiado em termos nacionais, há um certo
reconhecimento no meio. Pode ser que haja um desconhecimento na população em
geral. Também as pessoas ouviram falar, seguramente, no Manoel de Oliveira,
mas se perguntares se elas foram ver algum, ninguém foi ver os filmes dele.
No outro dia foi feito um inquérito sobre os públicos culturais do Porto –
nesta história da Porto 2001 – e os relatórios dizem: o público que vai regularmente
às actividades culturais é de 2% da população. Predominantemente
universitários, mas mesmo em termos universitários são só cerca de 5 a 10% é
que vão às coisas culturais. O que quer dizer que é uma ínfima parte da
população que se preocupa com as questões culturais. Mas também tem o reverso
da medalha: é um sector que pode crescer muito rapidamente. Tem uma taxa de
incidência tão pequena que se houver uma motivação forte...
C de C – Acredita que em 2001 isso vai acontecer...
AF – Se houver essa motivação forte pode crescer muito. Como essa questão
funcionou, por exemplo, na Expo. Os público culturais foram motivados pela
Expo. As pessoas aderiram: foram e passaram lá. Custou a chegar lá, nos
primeiros dias tinham 20 mil espectadores – tanta gente –, depois para o fim
foram 130. Cada vez mais, mais, mais! E depois continuou.
C de C – E depois há o pós-2001, de certa forma que também é...
AF – O que se passou na Expo: as pessoas começaram a sair mais às coisas
culturais. E, hoje, nas entidades culturais em Lisboa, há mais oferta e mais
público do que existia antes da Expo. E é possível e é desejável que isso
possa acontecer no Porto. (No Porto
2001) Que haja uma dinâmica
cultural que motive as pessoas a saírem de casa, e que crie hábitos que se
possam continuar a ter no futuro. Esperemos... Isto agora depende de como
as coisas correrem. Agora, esse reconhecimento internacional também é
relativo – sou conhecido num meio muito estrito da animação, mais nada.
</O:PO MUNDO DO CINEMA DE ANIMAÇÃO
C de C – Ou seja, aquela questão toda – que estava a falar na conferência –
do cinema de animação ser um tipo de cinema muito específico, no sentido de
ser cinema de autor... Quer dizer, já o próprio cinema de autor real, tem um
público mais específico, se calhar um público mais cinéfilo e menos
'pipoqueiro'...
AF – Repare: essa família em termos de animação, a família em termos
mundiais, é muito pequena. E daí eu posso ser conhecido no meio internacional
porque vou aos festivais internacionais, porque faço um esforço de ir ao
Festival de Annecy regularmente, e vou ao Cinanima
regularmente, e tenho uma presença mais ou menos nesses acontecimentos. E aí
ao fim de vários anos, as pessoas começam a conhecer as pessoas todas. A
família da animação em termos mundiais é muito pequena. São dois gajos aqui,
três gajos ali, quatro ali.
C de C – Mas há também os desenhadores das grandes companhias, as pessoas que
de certa forma estão ao lado da indústria da animação. Não há qualquer
relação?
AF – Há algumas pontes entre a indústria e os filmes de autor...
C de C – Mesmo entre as pessoas que trabalham, porque – imagino um
desenhador, um animador da Disney – se é aquilo que ele faz
profissionalmente, ele deve gostar de cinema de autor.
AF – Nem sempre isso é tão claro assim. Muitas vezes, nos grandes estúdios –
tipo Disney e companhia, que fazem as grandes séries, a parte industrial da
animação – existe uma divisão de tamanho tão grande que cada pessoa só sabe
do seu trabalho. Não sabe o que é que vem antes nem o que é que vai depois.
Ele é especialista naquilo ali, e não vê mais nada da produção. Ele ali é
bom. Mas não sabe como é que chegam aqui as coisas. Nem sabe o que vai
acontecer daqui para a frente. Com uma produção em série, uma cadeia de
produção toda retalhada, especializada nas suas funções, não é tão claro que
exista essa transparência entre as pessoas que estão a fazer os desenhos da
Disney, e que são interessadas pelos filmes de autor. Não sei se isso é
verdade. E tenho visto poucas pessoas dos grandes estúdios a participar nos
festivais. Existem mais autores que têm um sucesso com determinados filmes, e
determinadas curtas metragens que passam para as séries e para o mundo da
indústria. E esses autores fazem propostas de desenvolvimentos dos seus
filmes em termos industriais, e vão melhorar as qualidades dos produtos da
indústria. Daí eu também falar na questão da cultura geral – que me parece
importante, porque quando nós estamos a falar de uma indústria especialista,
não estamos a falar de cultura geral. Eles não têm que ter cultura geral, têm
que ter conhecimentos específicos.
C de C – Eu estou a imaginar, por exemplo, em termos do realizador – se
calhar é uma coisa irrealista o que eu vou dizer –, mas, muitas vezes, essa
especialização não poderia trabalhar a favor de um cinema de autor.
AF – Também pode, e há também alguns exemplos disso. Mas são mais as
excepções do que a regra. Por exemplo, há um estúdio francês que tem os dois
tipos de produção: uma produção de filmes de autor e uma produção de séries,
industrial. E tem um estúdio que tem cerca de 80 animadores, com uma escola a
funcionar, e tem um pequeno festival. Também tem uma coisa que é super
interessante: o que eles chamam de artiste-en-residence.
Todos os anos fazem um concurso para um autor que tenha feito um primeiro
filme fazer um segundo filme. E os filmes que forem escolhidos têm o estúdio
à disposição para o fazer. E então tu, como autor, tens um estúdio à tua
disposição com os equipamentos e o pessoal técnico que te ajuda a concretizar
as tuas coisas. Os resultados que os gajos tiveram: Cartoon D'Or, grandes prémios de festivais, e são hoje o estúdio
mais interessante que existe, de todos, em todo o lado.
C de C – Há também em Bruxelas, na Bélgica, um curso de realização em
animação experimental, na escola La
Cambre.
AF – É um curso de 5 anos. Eu conheço La
Cambre. Aliás, um dos meus professores – o Gaston Rock – foi um dos
fundadores de La Cambre. Morreu no
natal passado.
C de C – A propósito da formação e das escolas de animação: coloca-se sempre uma
questão maniqueísta, entre o autodidacta e o formado ou académico. Na
animação ainda há poucos cursos, por isso, poder-se-á dizer que haverá uma
passagem do autodidacta para a formação específica? Quase todos os animadores
são autodidactas, como o professor.
AF – Eu tenho uma grande dose de autodidactismo. Mas tentei sempre arranjar
formação específica – fiz os ateliers do Cinanima, fiz os ateliers em França,
uma semana aqui, uma semana ali. Fiz um estágio no Canadá de 5 meses, fiz um
estágio com o Gaston Rock em Bruxelas, em casa dele, e fiz um curso na
Gulbenkian com professores do Royal
College. E, sempre que me é possível arranjar formação, eu tento seguir,
dentro das minhas possibilidades. Por exemplo, naquela acção de formação que
nós organizámos em co-produção com um estúdio francês, no qual saiu o filme O Ovo e o Professor Nilo, foi um curso muito interessante em que eu aprendi
extraordinariamente. Foi super interessante... Foi um curso de A a Z, desde a
ideia até à projecção, em que uma pessoa falou de tudo. Precisamente
quebrando aquela ideia da especialização, que uma pessoa só tem que saber
daquilo. Falámos de todos os aspectos da produção, quer do desenho animado,
quer das marionetes. Portanto sou um
autodidacta que tem uma parte de formação, que é a possível. Agora as
pessoas que vem a seguir têm mais facilidades em encontrar outro tipo de
formação. O que acontece com o autodidacta é que vai muitas vezes perder
muito mais tempo para descobrir os processos e chegar lá ao fim. Vai-se
perder, vai andar por lá às voltas.
C de C – Se calhar a questão da cultura geral também se prende um bocado com
duas coisas: uma pessoa aprender de uma instituição ou de um 'mestre', mas
também nunca perder outras visões das coisas. Não sei se concorda ou não?
AF – A cultura geral é um bocado uma bagagem, que dá um estofo para
facilmente te adaptares a qualquer situação. E hoje vais para ali, amanhã
vais para ali e vais para acolá, e tens maleabilidade, tens liberdade de
escolha. Quando tu és um especialista só fazes aquilo. E se aquilo que tu és
especialista acaba, deixou de ser útil, tu estás perdido, não tens
alternativa, tens que começar de novo noutro caminho.
CINEMA DE ANIMAÇÃO PORTUGUÊS
C de C – Em relação ao cinema como realidade cultural em Portugal, acha que
existe o que se pode chamar de um qualquer tipo de escola de cinema
português? Ou mesmo até em relação ao cinema de animação, visto o Filmógrafo
ser uma referência tão importante. Ou não é, ou acha que é?
AF – Em termo de uma escola de cinema português em termos gerais de certa
forma existe. Os filmes portugueses têm algumas características que se
distanciam dos americanos ou dos ingleses. Se calhar são mais próximos das
pequenas cinematografias. Mas eu não sou um perito em termos de cinema em
geral, não sei desenvolver muito este tema. Em termos da animação: por
exemplo, alguém dizia que a animação começou há 10 anos, mas não é verdade...
a animação portuguesa começou há muito mais tempo. Por acaso é o tema de uma das retrospectivas que
nós gostávamos de organizar para a Casa da Animação: os pioneiros da animação
portuguesa. Porque acho que é uma história que está por contar e que é
necessário preservar, até porque uma grande parte são velhinhos, e que convém
recolher os seus depoimentos antes que seja tarde demais. Mas basicamente
houve um outro grande estúdio em Lisboa que era a Top Filmes, que fez uma
série de animações. Fez a série O
Romance e a Raposa, fez o Vamos
Dormir dantes – essas coisas – e fez um pacote de curtas metragens sobre
os contos tradicionais portugueses. E tem cerca de 2 horas de filmes de
animação ou mais, não sei exactamente... Era uma produção com características
mais industriais, mais ditas do clássico, da animação do desenho animado, mas
relativamente bem feita, na época. Existe a Optical Print e o Mário Neves que fez algumas curtas metragens,
uma outra curta metragem aqui e ali, e que trabalhou sobretudo na
publicidade. Foram opções que se desenvolveram em momentos específicos, com
as condições que existiam na altura. Obviamente que a partir de 91 com o
apoio mais regular para a parte da animação as coisas mudaram-se muito. E,
sobretudo, como antes de 91 houve cerca 15 anos em que não houve dinheiro
para a animação – foi enquanto o Salgado Matos foi presidente do IPC, 'não há
dinheiro para curtas, para a animação também não há' – e isso fez com que a
primeira geração de animadores...
C de C – ... desanimasse!
AF – ... acabasse. Não houve! Houve uma excepção, morreu, e depois começou
outra. Dos filmes apoiados após 91, só um é que foi feito pelo Mário Neves –
uma série que ele estava a fazer. De resto, são tudo gajos novos que surgiram
a partir dessa altura. Esta nova geração foi muito influenciada pelo
Cinanima, que tem uma cultura já visual. São alunos, muitos da Belas Artes ou
afins, e alguns estudaram lá fora – o Zepe esteve em La Cambre, por exemplo, a estudar. E têm uma cultura da imagem e
da animação muito mais direccionada para os filmes de autor. E nestes últimos
anos, têm sido sobretudo os filmes de autor que têm sido produzidos.
Infelizmente demora muito tempo a produzir – ainda no ano passado havia 20
curtas em produção. Este ano estão a sair 4, pelo menos que saíram
recentemente, e devem estar outras à bica para sair. Nos próximos tempos
vamos ver a vitalidade desta nova geração de animadores, porque os filmes
estão aí a sair. Eles estão a demorar 3 ou 4 anos quando deviam demorar 2,
por questões de pessoal, de capacidades, etc. E agora começa a haver uma
tendência de virar para as séries, para a indústria. Não é possível criar uma indústria assim do zero, é preciso
implementar passo a passo. As curtas metragens serviram de laboratório, a
criar talentos, a criar formações específicas no sector e a dinamizar
criativamente. Foram formadas diversas valências dentro da animação –
sobretudo artísticas e mesmo técnicas – que permitem agora começar a ver uma
pequena indústria da animação. E começam a surgir os primeiros estúdios
vocacionados para a indústria da animação em Lisboa. E começam a haver apoios
específicos para séries e apoios específicos para longas. Se o dinheiro que
existe agora fosse atribuído em 91, assim, não havia capacidade de produção
destes filmes todos na altura, e nem sequer havia projectos para tantas
coisas. Portanto essa escola foi-se formando na prática.
C de C – Em Lisboa há assim algum pólo tão congregador de pessoas, como o
Filmógrafo cá no Porto?
AF – Em Lisboa há os Animais, que
têm vários projectos em produção: há dois anos tinham 8 projectos em mãos –
eu disse que tinham saído 4 – 2 filmes são dos Animais. Existe a Animanostra
que fez Os Patinhos, e tem também
uma série mais dentro dessa via, mais televisão, e são os grandes pólos. E
depois existe a Neurónio, que está
a começar a funcionar agora, mas é um estúdio internacional que tem um pólo
em França, outro em Bruxelas, e outro no Luxemburgo e agora tem outro em
Lisboa. Por isso tem, no fundo, mais capacidade de produção para os projectos
que têm.
ABI FEIJÓ E O PERCURSO
C de C – Eu sei que é redundante perguntar: mas qual é a importância do
Cinanima, nesta fornada?
AF – Eu há bocado disse, o Cinanima é fundamental nesta história! Porque foi
ele que formou estes novos animadores que estão agora a sair, e que vêm muito
mais influenciados por essa estética, por tudo o que passa no Cinanima. Eu
fui ao 1.º Cinanima, em 77 – estive presente nas sessões todas do Cinanima.
Entre 77 e 78 fiz a minha primeira experiência de animação. Em 78 foi o
primeiro atlier do Cinanima, onde estive eu, o Nóbio que fez A Religiosa. Portanto a partir daí as
coisas foram surgindo: uma pessoa vai ao festival, vai vendo os filmes...
C de C – Foi o Cinanima, assim, um pouco a partir do nada, que o despertou
para o cinema de animação, ou já tinha alguma...
AF – Eu, quando surgiu o Cinanima, estava no meio das Belas Artes. Quando
entrei para as Belas Artes, eu queria fazer banda desenhada. Mas nas Belas
Artes a banda desenhada não existe. A não ser a pintura de cavalete, não vale
a pena pensar naquela casa. E, no meio dessa frustração, aparece o Cinanima
como alternativa, como a outra via, e as coisas rapidamente evoluíram para
aí. Foi o Cinanima que me motivou, e
se não houvesse o Cinanima eu não estaria a fazer animação. E depois por
outro lado, nesse primeiro festival apareceram também filmes excelentes. Na
altura era a idade do ouro do cinema canadiano, e nesse primeiro festival
estava presente A Rua da Caroline
Leaf, O Paisagista do Jacques
Drouin, e O Castelo de Areia de Co
Hoedman. Esses três filmes continuam para mim a ser três clássicos e três
marcos do cinema de animação. E os três no primeiro festival. No segundo
festival está o David do Paul
Driessen, que é outro filme para mim, absolutamente importante, mais uma
retrospectiva do McLaren.
C de C – A mim dá-me a sensação – e estava a ouvi-lo na conferência – dá-me a
sensação de que para uma pessoa ser animador implica um amor à causa muito
grande. Dadas as dificuldades todas...
AF – Em qualquer actividade artística ou tens esse amor à causa muito grande
ou é melhor ir vender sapatos. Porque as actividades artísticas vivem das
tripas e do coração dos autores, não vivem de mais nada. Isso é que é o
fundamental. Não é o dinheiro. Podes ter muito dinheiro ou não ter um tostão,
e isso não é importante. Tu vês agora aqui no Porto o José Pedro Sousa fez o Kuzz. Com nada, fez uma longa
metragem. Não sei se é boa ou se é má que eu não vi, não me interessa, pode
ser péssima, mas fez com nada uma longa metragem. E pelo menos isso é uma
vantagem, isso mostra que é possível ter outras atitudes. Por outro lado se
tu tiveres milhões de dinheiro mas se não tiveres ideias nenhumas... Qualquer
questão artística vive disso, do empenho que as pessoas metem nas coisas. E
aliás foi aquilo que foi mais importante no meu estágio do Canadá – e estive
5 meses no Canadá – resumidamente aquilo que eu aprendi no Canadá foi ter
confiança em mim. Eles diziam-me assim, qualquer coisa como isto: 'quando tu
estás a fazer um filme e tu te empenhas nisso, e fazes o teu melhor, o melhor
que tu sabes, e estás empenhado a fazer as coisas da melhor forma possível;
de uma forma ou de outra, as pessoas vão sentir isso, mas se tu tiveres a
fazer isso a cagar, lá está «tanto faz», também sentem isso'. Quer dizer o
quê? Empenha-te nas coisas, mete as tuas tripas e o teu coração, isso é que é
importante, isso é que é a base de tudo! O resto?!...
SER ANIMADOR - PASSADO, PRESENTE,
FUTURO
C de C – Estava a pensar – no sentido muitas vezes a animação se calhar é
maltratada – de que ser animador até é mais heróico do que uma outra série de
coisas, como o cinema não de animação. Há uma sensação que eu tenho de...
AF – Aquilo que pode existir nisto ser mais pesado ou menos pesado...
(interrompe Tentúgal o autor das músicas dos filmes do Filmógrafo)
AF – ... a única questão que tem de diferente é o processo trabalhoso que
pode ter o trabalho de animação. E daí uma pessoa tem que ter muito mais
perseverança e mais força de vontade. Nesse aspecto pode ser um pouquinho
mais mártir dos que os outros, mas só nessa questão, porque de resto... Sei
lá, a Regina, três anos e meio metida num quarto pintado de preto, a fazer um
filme sobre o medo de estar no escuro, que ainda por cima é autobiográfico,
ficou com um esgotamento. Nesse aspecto é um bocado heróico.
C de C – Talvez os computadores possam ajudar no futuro. Estas novas
tecnologias, poderão facilitar alguma coisa, como utensílio eficaz.
AF – Isso terá que ser sempre, as novas tecnologias são o que são, são novas
ferramentas. É mais um lápis que uma pessoa tem para fazer as coisas. O facto
de uma pessoa poder escrever romances, não é o lápis que escreve; tens que
ser tu a escrevê-lo. Com os computadores é a mesma coisa. Eles não vão fazer
as coisas por ti. Tu é que as tens que as fazer, sempre...
C de C – Acho que há muita gente iludida...
AF – ... a pensar que o computador vai resolver os problemas todos!? Que é
mais rápido?! A minha experiência com os computadores é – fico desesperado!
As coisas são tão simples de se fazer sem ser no computador... No computador
demoram 10 vezes mais. Essa ideia de que os computadores vêm acelerar os
processos de produção, não é verdadeira. Vêm complicar os processos de
produção... e muito nesta fase. Vão evoluir e amanhã podem simplificar muito.
Neste momento o que há é: perda de qualidade, aumento dos custos de produção,
e aumento do tempo de produção – não compensa. Amanhã, estou convencido, vai
ser um utensílio fundamental. Pode ser até que venha substituir a película.
Mas só acontecerá quando as vantagens forem evidentes e visíveis.
E O TARDE DEMAIS?
C de C – Para finalizar, acha que o seu filme está bem acompanhado, na
exibição nas salas?
AF – O Tarde Demais? Achei
interessante uma relação – estava a ver os cartazes dos dois filmes: os dois
no meio da água. É uma relação com a água, com o mar e com os barcos, e
portanto nesse sentido é interessante. Por outro lado o facto de 'ser tarde
demais' – no meu caso não foi tarde demais, mais vale tarde do que nunca.
Acaba por ser um pouco isso de as coisas estarem a ser levadas até ao extremo
dos limites que é lógico levar-se. Agora o filme em si vê bem. Tem uma
história muito forte. E tem as suas pequenas dificuldades. Sobretudo no
início, no espaço físico – acho que sentia necessidade de afastar câmara, de
sair dali, eu dizia: 'afasta, afasta'. Nunca tivemos, nem nunca temos esse
recuo que nos dê a localização, que nos situe a eles em relação às margens. E
isso eu acho que é pena porque ajudava o dramatismo do filme. Mas eu depois
estive a falar com o Zé Nascimento e ele disse-me: 'pois é que não tinha
meios técnicos para fazer, aquele plano do fim, se calhar devia ter existido
mais cedo; só tive uma tarde, uma horita ou duas para filmar, porque a
produção não disponibilizou o helicóptero'. São esse tipo de problemas, que
são as limitações da produção nacional – não temos nunca os meios que são
necessários. Por exemplo: os americanos, é preciso fazer uma cena de
perseguição, e dar cabo de 20 carros... Aqui é preciso arranjar, alugar o
helicóptero, que se calhar até é cedido por não sei quem, não sei quantos,
mas é só ali, contadinho.
Ficamos com o apetite de ver mais animação e de esperar pela próxima curta do professor Abi Feijó, talvez pronta para o próximo Cinanima.
por: José António
Se realmente existe uma cultura tradicionalmente portuguesa, então podemos encontrá-la em Fado Lusitano. Neste trabalho Abi Feijó percorre a História de Portugal em busca daquilo em que assenta o 'ser português'. Começa na pluralidade de povos que povoaram inicialmente as nossas fronteiras, fala de D. Sebastião, dos Descobrimentos. Encontra um povo destemido, com conquistas e fracassos, pacífico e integrador de culturas.
Abi Feijó fala-nos de pessoas resignadas num canto sombrio, húmido com cheiro a mofo que partem para o mundo em busca de novas oportunidades, um novo alento de conquista que transforma em bravos temerários aqueles que viviam resignados com a miséria. Mostra-nos Salazar, D. Sebastião e Mário Soares. Um povo religioso que chora a distância da sua terra natal. A saudade, palavra tão tipicamente portuguesa, ao som do Fado, som tão tipicamente português.
Como em outros filmes do mesmo autor, encontramos em Fado Lusitano um crítica aberta e directa à sociedade e à política nacionais. E é nestas condições que finalmente chegamos ao Portugal contemporâneo. Ao Portugal de Cavaco Silva, de Mário Soares e da Europa Unida. Pessimismo? Talvez um pouco de desconfiança na forma como todo o processo de Integração Europeia estava a ser conduzido, ou então simplesmente reticências sobre o funcionamento dessa mesma União.
J.A.