Argumento
História Trágica com Final Feliz
Exterior dia, ambiente campestre.
Écran branco.
Genérico de abertura.
Sobre o branco começa a distinguir-se uma leve textura.
Câmara afasta-se e vemos um pássaro e depois outros, que pairam num céu levemente nublado.
O movimento de câmara continua a afastar-se, vêem-se copas de árvores vistas de baixo.
A câmara gira e baixa até enquadrar uma paisagem campestre. O movimento de câmara para.
Na linha do horizonte um pequeno ponto aproxima-se, acompanhado por um som grave cadenciado, como que uma batida, crescente: TUM tum, TUM tum... é a personagem principal, uma menina, que chega de bicicleta, pedalando energicamente na direcção da câmara.
Os seus olhos levantam-se para o céu e percebe-se um esboço de um sorriso triste no seu rosto.
Narração em voz off:
Era uma vez uma menina cujo coração batia mais rápido que o das outras pessoas.
A menina continua a pedalar na direcção da câmara e esta como que entra pelo seu peito dentro, penetrando-o até ao coração, que vemos bater desalmadamente, em sincronia com o ritmo cadenciado que continuamos a ouvir.
Plano aproximado da roda da bicicleta que gira a toda a velocidade.
Câmara subjectiva sobre a paisagem, que se desenrola diante da bicicleta.
Aproximamo-nos de uma pequena cidade.
As pessoas voltam-se para observar a menina à medida que ela entra na vila.
Exterior dia, ambiente de bairro.
Grande plano da cara da menina.
O pequeno sorriso que víramos antes desapareceu da sua cara para dar lugar a uma expressão aflita.
Ao mesmo tempo, as pessoas voltam-se na sua direcção, com expressões de desagrado.
Movimento de câmara desde as expressões das pessoas quando a menina passa, girando para o ponto para onde a menina seguiu com a sua bicicleta.
Plano americano sobre a menina que chega a casa.
Visivelmente perturbada, atira com a bicicleta contra a parede e empurra a porta de casa, entrando a correr.
Interior dia, casa da menina.
A câmara acompanha-a e sobe, mostrando a sua trajectória em picado.
A menina empurra a porta do quarto sempre a correr e fecha-nos a porta na cara (câmara), deixando-nos no negro.
Interior noite, quarto da menina.
Do negro a câmara afasta-se e vemos o quarto.
Pela janela vemos que anoiteceu.
Plano aproximado da menina. A sua expressão é de desânimo.
Debruça-se sobre o seu próprio peito, tateando a zona do coração, e cobre o rosto com as mãos, em desespero.
Plano de detalhe de um móvel do quarto.
Os objectos pousados sobre ele estremecem ao ritmo do ruído cadenciado que escutamos desde o inicio do filme, que é o barulho do coração: TUM tum, TUM tum...
De novo a menina, encolhida e aninhada em cima da cama, desesperada.
Num movimento rápido pega nas pontas dos lençóis e esconde-se sob os cobertores, como que para abafar o ruído do seu coração e para se isolar do mundo ao mesmo tempo.
Narrador
Isso provocava-lhe uma grande angustia
à qual não sabia como escapar,
pois além do seu sofrimento
o coração fazia muito barulho
e incomodava as pessoas...
Plano sobre a janela do quarto, através da qual vemos a silhueta das casas da vila, na noite.
Na silhueta ilumina-se uma janela.
Interior noite, quarto de um vizinho
Um vizinho estremunhado, que acordou com o barulho do coração, tenta escapar ao ruído, pressionando uma almofada sobre os ouvidos.
Interior noite, quarto da menina
Através da janela do quarto da menina, vemos novamente a silhueta das casas da vila, onde as janelas se vão iluminando, uma a uma.
Interior noite, quarto de outros vizinhos
Um casal de vizinhos idosos tapa os ouvidos com as mãos, aturdidos com o barulho.
Interior noite, quarto da menina
Uma vez mais, através da janela, vemos a silhueta das casas da vila na noite, onde cada vez mais janelas se vão iluminando.
Plano geral do quarto da menina, distorcido como que por uma grande angular, onde a vemos a contorcer-se torcida de desespero na cama.
Interior noite, quarto do primeiro vizinho
O vizinho, em pijama, ajoelha-se na cama e abre a janela, enfurecido.
Exterior noite, quarto do primeiro vizinho
O vizinho, despenteado e visivelmente contrariado, assoma à janela, proferindo protestos, vociferando e acenando.
Exterior noite, meio da rua
Os cães das vizinhanças juntam-se na rua em frente à casa a menina e, excitados com o barulho do coração e com todo aquele reboliço, ladram e uivam furiosamente na direcção da sua janela.
Exterior noite, outras janelas.
Mais vizinhos aparecem nas suas janelas e varandas, incomodados e apreensivos, murmurando entre si, na direcção da janela da menina.
Exterior noite, rua.
Há um burburinho geral. As pessoas continuam toda a noite nas janelas e varandas, acompanhado pelos latidos interruptos dos cães e pelo barulho do coração.
Exterior dia, rua.
Entretanto, no mesmo plano, o dia amanhece. Os cães continuam a ladrar. As pessoas deixam finalmente as suas casas e dirigem-se para a casa da menina.
Interior dia, casa da menina
Ouve-se bater à porta. Uma sombra, seguida de uma mão, abre a porta. Do outro lado, na rua, estão todos os vizinhos irados e olheirentos, depois de uma noite em claro, precedidos pelos cães enraivecidos.
Exterior dia, rua
A menina sai de casa, ela também visivelmente cansada e abatida e com uma voz tímida e um ar grave e sério tenta explicar às pessoas a razão do seu problema, gesticulando veementemente ao mesmo tempo.
Menina
É que na verdade eu sou um pássaro,
só que estou no corpo errado.
Daí o meu coração bater muito rápido,
é um coração de pássaro...
A raiva das pessoas cede lugar à incredualidade e depois à compaixão. Trocam olhares entre si, abanam a cabeça e murmuram ao ouvido uns dos outros:
Pessoas
Coitada, é tolinha!...
Vai morrer, não dura muito tempo...
A menina que vemos ao fundo, apercebe-s que não é compreendida, baixa a cabeça, corre para a sua bicicleta e desata a pedalar a toda a velocidade.
Um movimento de câmara mostra-nos a sua trajectória e vemo-la sair da aldeia, na direcção dos campos.
Exterior dia, ambiente campestre
A sua expressão é de tristeza e desespero, enquanto pedala energicamente.
Começa a levantar-se vento, revolvendo-lhe os cabelos em todas as direcções.
A câmara sobe de um grande plano da sua cara para o céu que escurece com nuvens que se adensam.
Desatam a cair grossas gotas de chuva e relâmpagos rasgam o céu.
Os sons dos trovões confundem-se com o barulho do coração.
Narrador
Então ela deixava-os e fugia
Para que as suas lágrimas se confundissem
Com as gotas de chuva
E também para que as pessoas
Não sentissem ainda mais raiva se descobrissem que
A origem da chuva era a sua tristeza
A menina continua a pedalar contra o vento, fustigada pela chuva.
Vemo-la sair de campo deixando para trás de si a tempestade.
A câmara sobe e vemos o céu cerrado nuvens e de chuva.
A chuva abranda e, a pouco e pouco, as nuvens tornam-se mais leves, mais raras, e o céu começa a aparecer limpo, claro e lavado.
Um pássaro cruza o céu.
Exterior dia, janela do quarto da menina
O seu olhar segue o pássaro, enquanto come um biscoito.
Sorri e desfaz um pedaço do biscoito em migalhas.
Estende a mão no parapeito e aguarda, sempre com o olhar posto no céu, ansiosa e curiosa.
O pássaro entra em campo e pousa no parapeito.
Depois, a pouco e pouco, vai-se aproximando da sua mão.
Toma coragem, pica algumas migalhas e afasta-se.
Aproxima-se novamente, ganha confiança e começa a comer as migalhas da sua mão permitindo até que ela o acaricie.
Quando as migalhas acabam, o pássaro chilreia, mas não foge, como se pedisse mais.
Grande plano da cara da menina que sorri, satisfeita.
Interior dia, quarto da menina.
Pega no pássaro com ambas as mãos e solta-o no ar, para que vá, para que voe.
O pássaro sai pela janela e a câmara segue-o, num ponto de vista aéreo sobre a rua.
Exterior dia, rua.
Na rua vemos as pessoas na sua lida normal, marcando as suas actividades com os sons que produzem:
A senhora que caminha na rua, marcando os seus passos com o som dos tacões: TOC toc; TOC toc...
O merceeiro que faz as contas na sua maquina registadora: PLIM plim, PLIM plim...
O varredor das ruas: VASP vasp, VASP vasp...
Os meninos que jogam à bola: TAM tam, TAM tam...
A velhinha que passa com seu carrinho de compras com rodas: NHIC nhic, NHIC nhic, arrastando o seu cachorro pela trela.
Quando o cão passa pela bicicleta da menina encostada à parede, faz chichi contra ela.
O curioso era que todos os movimentos das pessoas, todos os seus gestos, todas as suas actividades, aconteciam, sem que elas se apercebessem, ao ritmo do barulho do coração da menina, certo como um relógio: TUM tum, TUM tum...
Sem se aperceberem, incorporaram o barulho do coração nas suas vidas.
Narrador
Mas, como ela insistia em continuar a viver,
As pessoas foram-se desinteressando,
Habituando-se ao barulho que o coração fazia
Acabando por desprezá-la
E depois por esquece-la.
Vemos novamente um plano geral picado sobre a rua.
Lentamente, começa a escurecer.
A câmara desce e vemos as pessoas começarem a largar as suas actividades ritmadas e recolhem às suas casas.
Exterior noite, rua
Anoitece e vemos as casas em silhueta, com as janelas iluminadas.
Algumas luzes vão-se apagando.
Interior noite, quarto dos vizinhos idosos
Na semi obscuridade do quarto, o casal dorme tranqüilamente, ressonando ao ritmo do coração da menina.
Exterior noite, rua
Na silhueta das casas da vila, uma a uma, cada vez mais luzes se apagam.
Interior noite, quarto do outro vizinho
Também este vizinho dorme sem problemas.
Exterior noite, rua
Os cães dormem na rua.
O ambiente é calmo.
O coração ressoa surdamente sobre a vila como que assegurando que a vida segue o seu ritmo normal no seu rumo natural.
Todas as casas estão mergulhadas na mais completa escuridão.
Interior noite, quarto da menina
Ela dorme.
Subitamente, o seu corpo estremece por baixo dos cobertores, acordando-a.
Ela não se assusta com isso. Olha por cima do ombro para as costas, sorri e volta a adormecer.
Narrador
Por isso ninguém se apercebeu
Das transformações que o seu corpo sofria
Com o passar do tempo.
Passagem do tempo.
O tempo passa.
Anoitece, amanhece, a luz obriga as sombras a percorrerem o mesmo percurso todos os dias.
Interior dia, quarto da menina.
Vemo-la sair da cama e seguimos os seus passos.
Entra no quarto de banho e corre a cortina.
Interior dia, quarto de banho.
Abre a torneira, toma um duche.
Sorri enquanto se lava e deixa a água correr pelas costas.
Fecha a torneira, pega numa toalha e enrola-se nela.
Sai do quarto de banho vem para o quarto. A câmara acompanha-a.
Na mão traz um pente.
Interior dia, quarto da menina.
Pára em frente à janela e penteia os cabelos, ainda molhados.
O seu olhar é atraído para o céu.
Nos vidros da janela vemos reflectido um bando de pássaros que voam.
Exterior dia, céu
O céu, com leves nuvens apenas, é atravessado por esse bando de pássaros em formação, provavelmente migratórios que iniciam a sua viagem.
Interior dia, quarto da menina.
Distinguimos a menina de costas em contra luz, quieta, que observa pela janela o exterior.
Exterior dia, Vila
Plano geral de grande angular sobre a rua.
Vemos as pessoas nas suas actividades ritmadas.
No céu, o bando de pássaros afasta-se.
Distingue-se a pequenina silhueta da menina na sua janela.
Sobre a Vila paira o barulho do coração, como uma aura.
Tudo parece perfeito.
Interior dia, quarto da menina.
A silhueta da menina continua em frente à janela. Deixa cair a toalha onde se enrolara depois do banho.
Abre a janela com um movimento enérgico e continua a olhar o exterior.
Exterior dia, rua.
As pessoas no exterior continuam as suas actividades de todos os dias, ritmadas pelo coração:
Os meninos que jogam à bola: TAM tam, TAM tam...
O merceeiro que faz as contas. No mostrador na sua maquina registadora desfilam algarismos: 4... PLIM plim, 3... PLIM plim, 2... PLIM plim, 1... PLIM plim
Interior dia, quarto da menina.
Nesse preciso momento, subitamente como se tratasse de uma explosão, vemos abrirem-se duas asas nas costas da silhueta da menina.
É nesse instante que deixamos de ouvir o barulho do coração e ficamos mergulhados num silêncio profundo.
Exterior dia, Rua
No instante que deixa de se ouvir o barulho do coração, toda a rua rebenta num caos:
PLIM...PLOP!, saltam as teclas da caixa registadora do merceeiro!
O mostrador marca zero...
CRASH!, a bola dos meninos sai disparada sem controle e parte o vidro da montra!
CRAC!, o salto da senhora dos tacões quebra-se e por pouco que não parte uma perna!
VLUM!, o saco das compras rolante da velhota e toda a espécie de géneros rebola pela calçada...
TRAZ!, quebra-se a vassoura do varredor!...
As catástrofes sucedem-se umas às outras como uma cascata.
Algo que sustentava o tempo deixou de existir.
Interior dia, quarto da menina.
A menina trepa para o parapeito da janela, faz uma pequena pausa e salta.
Vemos as suas pernas que vão desaparecendo pela parte superior da janela.
Depois, mais nada.
Apenas o silencio, a janela aberta, vazia donde podemos ver o céu limpo e claro.
Exterior dia, Rua
Na rua, pessoas estão ainda aturdidas e não se aperceberam do que se passa.
O Varredor baixa-se para apanhar a vassoura partida do chão.
Ao fazer isso apercebe-se de uma estranha sombra em movimento, projectada no solo.
Olha para cima para ver a origem da sombra e os seus olhos e boca abrem-se de pasmo.
A câmara começa a afastar-se e todos os habitantes da aldeia olham os céu, completamente assombrados.
Ouve-se um sussurro geral de espanto e a surpresa é evidente no seu olhar.
A câmara continua a afastar-se vemos as pessoas cada vez mais pequeninas. Sobre elas projecta-se aquela estranha sombra.
Agora já é toda a aldeia que se vê pequenina e as pessoas são apenas pequenos pontos
A câmara continua a subir cada vez mais, começam a aparecer nuvens e a imagem da pequena vila torna-se indefinida como um sonho distante, de contornos cada vez mais difusos até deixar de se ver.
A claridade aumenta à medida que continuamos a subir e as imagens tornam-se cada vez mais diáfanas.
Por fim fica apenas o écran branco luminoso.
Genérico de fim
Exterior dia, rua
Durante o genérico voltamos à pequena vila.
Em frente da sua mercearia o merceeiro olha à sua volta como que à procura de alguma coisa. Por fim suspira e encolhe os ombros.
Genérico
Exterior dia, rua.
O varredor tenta na sua tarefa, encontrar o ritmo dos movimentos de outrora.
Sem sucesso, desiste, desanimado.
Genérico
Interior noite, quarto da senhora dos tacões.
A senhora acende a luz.
O silêncio é completo.
Desgrenhada e desanimada olha a câmara, engole alguns comprimidos, bebe água e deita-se de novo, tentando em vão dormir.
Genérico
Exterior noite, rua
Um cão dorme enroscado na rua.
Subitamente abre os olhos e levanta uma orelha.
Solta um pequeno latido de entusiasmo e espera de focinho no ar.
Mas a resposta de volta é apenas o silencio.
Desanimado baixa as orelhas e volta a deitar-se.
Fim